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Squid Game

Recuso-me a olhar o mundo na perspetiva do velho do Restelo. Temo sempre que, de uma forma sorrateira, ele entre e me contamine o olhar, me leve a ver coisas terríveis no que apenas traduz o devir do mundo, das ideias, da forma de estar e sentir. Por isso quando ouvi falar com elevada preocupação do Squid Game (série de 9 episódios da Netflix), ocorreu-me o pensamento: será assim tão mau?

Nada melhor que ver algum episódio, dado que avaliar o que não se conhece implica obviamente riscos acrescidos de distorção. O meu filho, que já é maior de idade e já tinha visto os episódios todos, ficou incrédulo com a decisão. “Não é o teu estilo”, avisou.

Lançar num jogo 456 pessoas adultas, tendo elas como característica comum o elevado endividamento – algumas das quais, devido à compulsão para o jogo –, suscitou-me curiosidade. O filme começou ilustrando a realidade de um homem adulto que vira a sua vida pessoal e familiar ficar completamente arruinada em resultado de apostas consecutivas em corridas de cavalos. A todas as personagens aliciadas para entrar no jogo foi dito que podiam ganhar o suficiente para acabar com as suas dívidas; o que não lhes foi revelado é que só um – o que ganhasse – sairia vivo daquele macabro jogo. Pensar que em mais de quatrocentas pessoas só uma iria sobreviver pode parecer assustador. Mas pior que isso é a forma como a morte ocorre e o tipo de jogos que, ao longo de nove episódios, se vai desenrolando. O primeiro jogo mortífero é o “Um, dois, três macaquinho do chinês”. Este e outros jogos infantis são o contexto em que se perde a vida. Porquê esta invasão do mundo infantil? Não aceito que a simplicidade das regras dos jogos dos mais novos seja usada como justificação para o seu uso. Não encontro nesta ideia qualquer criatividade, além de que, o domínio da infância não deveria ser vandalizado. A curiosidade dos mais novos face a uma série que aborda os seus jogos torna inevitável a sua vontade de espreitar. Há até já alguns países europeus, como, por exemplo, Bélgica, Reino Unido e Espanha, onde o alerta foi dado, uma vez que já foram identificadas crianças a tentar implementar os desafios destes jogos.

A este propósito não me venham dizer que a série é para maiores de 16 anos, pois muito facilmente crianças e adolescentes acabam por furar as regras. Posso dar um exemplo pessoal. No mesmo dia em que vi o primeiro episódio, soube que a minha filha de 13 anos já os tinha visto todos. Serei uma mãe desatenta? Considero que sou igual a muitas outras: apesar de consciente e atenta, muito me foge ao controlo. Viu os episódios num fim de semana que passou fora com familiares, na companhia das primas mais velhas, que estão na faixa etária dita “ajustada” a “tão educativo” jogo. Não se podendo controlar em absoluto, alertar os filhos para os riscos emocionais de determinados conteúdos é certamente mais eficaz do que a proibição, sobretudo na adolescência, em que quebrar as regras é extremamente aliciante.

Quando a vida de pessoas é colocada ao nível do lixo, sou invadida por uma profunda preocupação. Aquelas pessoas são condenadas à morte num país como a Coreia do Sul (proveniência do filme), em que o elevado endividamento é um problema social grave. A dívida das famílias neste país equivale a mais de 100% do PIB (produto interno bruto), sendo o valor mais elevado em toda a Ásia. Mandar toda aquela gente arruinada para um combate fatal é, no jogo, apontada como a solução mais viável.

Pelo que li, a popularidade desta série foi arrasadora e já muitos pedem por mais uma temporada. Sendo mais concreta, esta é a série mais vista de sempre da plataforma streaming Netflix, com 111 milhões de visualizações. Curiosamente, o guião deste filme já está concluído desde 2019, mas só agora teve contexto para nascer. Porque será? Talvez a realidade tenha hoje mais ingredientes para que a máxima popularidade seja atingida.

Como profissional não posso deixar de afirmar o quanto o conteúdo desta série é inadequada para os mais novos, que não têm capacidade para processar a sua incomensurável carga violenta. Quanto ao público adulto, não fico propriamente surpreendida com a gigantesca audiência, mas confesso que fico apreensiva com a procura desenfreada de conteúdos em que o que fica a nu é o comportamento mais perverso do ser humano.


ADRIANA CAMPOS
Licenciada em Psicologia pela Universidade do Porto, na área da Consulta Psicológica de Jovens e Adultos e mestre em Psicologia Escolar. Detentora da especialidade em Psicologia da Educação e das especialidades avançadas em Necessidades Educativas Especiais e Psicologia Vocacional e de Desenvolvimento da Carreira atribuída pela Ordem dos Psicólogos Portugueses. Atualmente desenvolve a sua atividade profissional no Agrupamento de Escolas do Padrão da Légua em Matosinhos.

A informação aqui apresentada não substitui a consulta de um médico ou de um profissional especializado.

Artigo originalmente publicado no Educare.pt

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